24 June 2020 – Guest contribution

Em busca das raízes de Alfonsina Storni

Alfonsina Storni caminhando pela rambla de Mar del Plata. (Acervo do Arquivo General de la Nación Argentina)
Alfonsina Storni caminhando pela rambla de Mar del Plata. (Acervo do Arquivo General de la Nación Argentina)

Em fevereiro de 2020, Wilson Alves-Bezerra residiu na Casa de Tradutores Looren trabalhando na tradução de poemas de Alfonsina Storni e na elaboração de um estudo biográfico que resgate as raízes suíças da poeta, que nasceu e viveu seus primeiros anos em Sala Capriasca, no Cantão Ticino.

Por Wilson Alves-Bezerra

Alfonsina Storni é majoritariamente conhecida como poeta e argentina. Sua origem, no entanto, está do outro lado do Oceano Atlântico. Ela nasceu no Cantão Ticino, na Suíça, em 29 de maio de 1892, e lá viveu seus primeiros quatro anos quando seus pais – Alfonso e Paulina – decidiram cruzar outra vez o oceano, para se instalar na província de San Juan, na Argentina. O casal já tinha vivido uma temporada naquele país, para acompanhar os irmãos mais velhos de Alfonso, que haviam instalado uma fábrica de cerveja, gelo e água gaseificada, anos antes.

Já no fim da vida, ao falar sobre suas primeiras lembranças, as memórias de Alfonsina serão argentinas. É a recordação de um episódio em que, menina, era proscrita da linguagem escrita, ou ao menos daquela língua escrita. Alfonsina tem nas mãos um livro em espanhol, que não consegue ler:

Estou em San Juan, tenho quatro anos; me vejo corada, redonda, nariz de batata e feiosa. Sentada no portal da minha casa, mexo os lábios como se estivesse lendo um livro que tenho nas mãos e espio de rabo de olho o efeito que causo nos passantes. Uns primos me envergonham gritando que o livro está de cabeça para baixo e eu corro para chorar detrás da porta. (Storni, “Entre um par de maletas meio abertas e os ponteiros do relógio”, 1938)

Além dessa lembrança argentina, há outra, anterior, rememorada na mesma ocasião. Trata-se de um poema de 1920, no qual, sem nomeá-la, a poeta evoca sua terra natal:


Apagada

No dia em que eu morrer, a notícia

Vai seguir as práticas habituais,

E de cartório em cartório,

Nas certidões vão me buscar.

 

E lá, bem ao longe, em uma cidadezinha

Adormecida ao sol na montanha

Em cima do meu nome, em um registro velho,

Uma mão que ignoro depositará um traço.

(Storni, Alfonsina. Languidez, 1920)

           

Alfonsina escreve esses versos, nos quais, para além de trazer à cena o seu não nomeado lugar de origem, coloca em perspectiva sua própria vida, no momento em que, aos 28 anos, está se naturalizando argentina. Sala Capriasca é uma imagem, é a terra perdida onde está seu documento de origem.

Entretanto, não é neste conjunto de lembranças apenas que há que se buscar as raízes suíças de Alfonsina Storni, e sim noutras marcas mais constitutivas, como sua educação, seu modo de ser e viver, que foram decisivos para que se tornasse a mulher, militante e poeta que foi. Há na obra e na persona de Alfonsina um desarraigo, um senso de não pertencimento e um gesto radical de escrever contra o que é hegemônico e estabelecido – trais traços são decisivos para compreendê-la. Isso me perguntava quando cheguei, no dia 1 de fevereiro, à Casa de Tradutores Looren, para participar do Programa Looren América Latina/Coincidência, em uma temporada intensa de trinta dias de residência de tradução, para fazer a primeira antologia brasileira de poemas de Storni. Além dessa, havia outra pergunta: o que se pode encontrar na terra da infância de uma poeta?

Saindo por uns dias de Wernetshausen, na Suíça alemã, e me dirigindo à Suíça italiana, visitei a cidade natal de Paulina Martignoni, Lugano, e o povoado de Alfonso Storni, Lugaggia, para então chegar à casa onde nasceu Alfonsina, em Sala Capriasca, cravada no coração de uma vila medieval. A casa, íntegra, preservada, hoje ostenta uma placa em homenagem à poeta que, ainda menina, correu por aquelas paragens, numa pracinha de pedra que também já leva seu nome.

Ao percorrer a região montanhosa – Lugano está ao pé do Monte Bigorio e Sala Capriasca cravada no meio do Monte – e ao ver as placas do comércio e às lápides nos cemitérios, nota-se o contraste entre os Storni – sobretudo dedicados ao comércio – e os Martignoni, gente da capital. Paulina, por exemplo, era professora, e ensinou à filha o gosto pela música, o teatro, e ajudou-a com os três idiomas que Alfonsina aprendeu: italiano, espanhol e francês. Tempos depois da morte da poeta, a mãe publicaria uma carta de desagravo à memória de Alfonsina, falando que ela é parte de uma linhagem suíça na qual há um padre e um poeta.

Enfatizo isso porque a imagem que se produz de Alfonsina neste meu percurso suíço é bem diversa daquela que se costumava difundir dela na Argentina, a de mulher de poucas luzes. Nota-se a dificuldade presente em algumas leituras locais de compreender que a poesia de Storni é fruto de um projeto estético, que se transforma no tempo, e que passa por leituras de Baudelaire, D’Annunzio e Rubén Darío, retrabalhados a partir de um eu-lírico feminino, que coloca em cena o próprio corpo, seus desejos e suas paixões. Nota-se a dificuldade de reconhecer como legítima uma poética que não se filie àquelas das vanguardas hegemônicas. Na importante revista Sur, que fundou sua contemporânea Victoria Ocampo, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo publicaram algumas de suas páginas fundamentais; a revista, no entanto, manteve suas portas fechadas a Alfonsina.

Questionada por seu gênero, sua classe social, seu estilo, a recepção da obra de Storni pela intelectualidade rio-pratense mostrou-se problemática. Para recuperá-la, é preciso compreender o alcance de seu projeto, e entender como escrevia contra seu tempo e contra seu entorno. É preciso vê-la a partir de sua condição excêntrica. É preciso desterrá-la para melhor compreendê-la, na diferença que conforma sua singularidade.     

Alfonsina, migrante, perdeu o pai aos dezesseis anos, e viu seus horizontes se transformarem. Nem ela nem a mãe aventaram a possiblidade de retornar à Suíça. Paulina retomou a carreira de professora, e Alfonsina se aventurou em diferentes ofícios: foi como operária, aos dezesseis, como atriz, incentivada pela mãe, incorporou-se a uma companhia teatral, em turnê pelo país; na volta, formou-se professora e atuou até como redatora publicitária. Afrontou suas dificuldades econômicas com o repertório familiar de que dispunha: sua formação, seu destemor e seu desprezo pelas convenções. Foi mãe solteira em Buenos Aires aos 20 anos e lá se estabeleceu como poeta e cronista, em círculos intelectuais onde só havia homens, como o da revista Nosotros; publicou ainda no jornal hegemônico La Nación ao longo de toda a vida; foi feminista atuante, morreu popular e consagrada.

           

Wilson Alves-Bezerra (S. Paulo, 1977) é tradutor, escritor, crítico literário e professor universitário no Brasil. Traduziu Horacio Quiroga, Luis Gusmán e Sergio Bizzio. Tem livros publicados no Chile e em Portugal. Sua antologia brasileira dos poemas de Alfonsina Storni, acompanhada de um estudo biográfico, já está no prelo e vai se chamar: Sou uma selva de raízes vivas (Ed. Iluminuras).


Clique nas imagens para ler as legendas.

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